A mãe de todas as bolhas?
Ouro, petróleo, moedas de países emergentes, títulos da dívida iraquiana, apartamentos em Hong Kong -- tudo se valoriza na euforia que toma conta do mercado financeiro mundial
Por Tiago Lethbridge, de Nova York | 26.11.2009 | 00h01 - EXAME
No início da década, em meio à ressaca causada pela implosão do mercado acionário após o fim da euforia com a internet, um adesivo de carro tornou-se popular nos Estados Unidos -- "Deus, dê-nos mais uma bolha", era a prece de americanos que haviam perdido o dinheiro de suas aposentadorias em ações que acabaram virando pó. Demorou alguns anos, mas, como hoje bem se sabe, as preces foram atendidas (a bolha seguinte se provou muito mais letal do que a anterior, mais uma prova de que é mesmo recomendável ter cuidado com aquilo que se deseja). Após o pânico que devastou o mercado no ano passado, mesmo os mais otimistas viam pela frente anos de vacas magras para os investidores: a inevitável freada econômica jogaria o preço das ações para baixo, e quem quisesse uma nova bolha para compensar a pancada de 2008 teria de rezar dobrado e ter muita paciência. Mas não foi o que aconteceu
Poucos meses depois da maior crise financeira das últimas décadas, o mercado financeiro mundial já vive um novo período de euforia. Moedas de países emergentes, apartamentos em Hong Kong, petróleo, ouro, ações na Índia, títulos da dívida iraquiana -- está tudo se valorizando num ritmo de tirar o fôlego. A nova bolha já chegou?
Poucas perguntas são tão importantes para o futuro da economia mundial. Caso uma bolha esteja realmente em estágios avançados de inchaço, uma nova onda de pânico no mercado financeiro pode arrasar as esperanças de recuperação econômica. Nas últimas semanas, os alertas para os riscos de uma valorização irracional nas bolsas se multiplicaram. O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, e técnicos do Fundo Monetário Internacional alertaram para a possível formação de bolhas, especialmente na Ásia. Bill Gross, fundador da Pimco, um dos maiores fundos de investimento do mundo, fez o mesmo. E, claro, ninguém resumiu melhor esse temor do que Nouriel Roubini, o economista-celebridade, eterno pessimista de plantão, que ganhou status de oráculo ao prever o estouro da bolha anterior. Para ele, a taxa de juro americana, próxima de zero, está dando origem ao chamado "carry-trade", fenômeno em que os investidores tomam emprestado em países com juros baixos e aplicam em outros lugares na busca de retornos maiores. Segundo Roubini, é isso que está acontecendo com o dólar. Assim, enquanto a moeda americana perde valor (está em seu nível mais baixo em 15 meses), os outros ativos atingem níveis pouco ligados à realidade. Roubini apelidou o fenômeno de "mãe de todas as bolhas de ativos". Qualquer solavanco na economia mundial, continua ele, causará uma reversão desse fenômeno, uma súbita valorização do dólar e mais pânico.
Para os pessimistas, a exuberância dos mercados emergentes em 2009 é a principal evidência da suposta irracionalidade do momento atual. A magnitude da recuperação das bolsas desses países realmente impressiona. Segundo a agência de notícias Bloomberg, todas as dez bolsas líderes em valorização no ano são de mercados emergentes. Na Rússia, a alta foi de 134%. No Brasil, o índice Bovespa subiu 138% em dólares. Enquanto o SP 500, índice que reúne as ações das maiores empresas americanas, subiu 27% no ano, o índice MSCI, que reúne os principais mercados emergentes, subiu 65%. Essa valorização é impulsionada por um fluxo de dólares de tirar o fôlego. As bolsas de países emergentes receberam 63 bilhões de dólares no ano, quebrando o recorde de 52,7 bilhões de 2007. No Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), o volume é 50% maior do que o recorde anterior. Outra consequência da enxurrada de dólares é a brutal valorização das moedas desses países. O real é o primeiro da lista: ganhou 26% em relação ao dólar até novembro. Para evitar uma valorização ainda maior, o governo brasileiro vem tentando segurar a onda de dólares com as mãos -- mas a criação de uma taxa de 2% para investimentos estrangeiros, em outubro, não conseguiu reverter o fenômeno. Para o Bank of America Merrill Lynch, o preço justo do dólar é 1,60 real, com ou sem imposto. Outros países decidiram seguir o exemplo brasileiro, numa desesperada tentativa de segurar o câmbio e manter a competitividade de suas exportações. Taiwan foi o primeiro. A Indonésia pode ser o segundo.
Entre os emergentes, nenhum país concentra tantos temores de exuberância irracional quanto a China. Primeiro, porque o país se tornou a locomotiva do crescimento mundial nos últimos dois anos. Uma escorregada chinesa, portanto, causaria convulsões no mundo inteiro. Segundo, porque a China tem todos os pré-requisitos para o nascimento de uma bolha, a começar pelo principal -- crédito farto. Para estimular a economia, o governo criou no ano passado um programa de estímulo orçado em quase 600 bilhões de dólares. Foi um sucesso. A economia chinesa cresceu 9% no terceiro trimestre, um desempenho espantoso num período de letargia no resto do mundo. Esse desempenho se deve a uma injeção de crédito na veia: o volume de empréstimos cresceu 34% de um ano para cá. Diante disso, começaram a surgir temores de que as coisas estão, na verdade, quentes demais.
O economista Paul Krugman, ganhador do Nobel de Economia do ano passado, afirmou recentemente que o excesso de crédito na economia chinesa está inflando não uma, mas diversas bolhas. Dois mercados são os principais focos de preocupação -- a bolsa e o mercado imobiliário. Segundo um estudo do governo, cerca de 20% do dinheiro do programa de estímulo foi parar diretamente no mercado acionário, criando uma alta de quase 80% no ano. Já o volume de casas vendidas cresceu 85% no país em 2009, e o preço subiu 30% em Xangai, centro financeiro do país. Em Hong Kong, o apartamento mais caro da história do país foi vendido por 57 milhões de dólares. Hoje, o preço médio das casas chinesas é equivalente a nove vezes a renda das famílias. No resto do mundo, um múltiplo de quatro vezes já seria suficiente para acender o sinal amarelo.
Apesar dos inegáveis sinais de euforia, ainda é muito cedo para afirmar que existe uma bolha, seja na China, seja em outros mercados emergentes. É preciso, antes de qualquer coisa, colocar a recente valorização em seu devido contexto. A alta das bolsas nos últimos meses foi precedida por quedas ainda maiores no fim de 2008, quando reinava a sensação de que o mundo caminharia para a nova Grande Depressão. A partir de março, quando ficou claro que os bancos americanos voltavam a ganhar dinheiro, os investidores começaram a tirar o dinheiro de debaixo de seus colchões. A valorização generalizada dos últimos meses, portanto, não tem nada de irracional -- é racional mesmo. A cotação do petróleo, que chegou aos 78 dólares após subir mais de 70% no ano, ainda está longe dos quase 150 dólares do ano passado. No caso das ações, a melhor forma de definir se um mercado está ou não hiperaquecido é observar a relação entre o preço das ações e o lucro das empresas. Quanto mais eufórico o investidor, maior é esse múltiplo. Segundo cálculos do banco de investimento Morgan Stanley, o atual múltiplo dos mercados emergentes é de 12,9 vezes o lucro previsto para o ano que vem, exatamente a mesma média dos últimos 16 anos. Com base nessa metodologia, conclui-se que os mercados emergentes não estão caros -- embora também não estejam baratos.
Uma análise mais detalhada coloca a suposta bolha chinesa em xeque. Os atuais múltiplos da bolsa de Xangai são, realmente, colossais na comparação com os outros países: 24 vezes. Parece muito, mas é pouco se for comparado com a história da própria China. Há dois anos, as ações eram negociadas a um múltiplo de 70 vezes, e a média histórica é de 37 vezes. Finalmente, o mercado imobiliário também não está tão aquecido quanto parece. Apesar da valorização dos últimos trimestres, o índice nacional de preços de casas subiu apenas 2% de um ano para cá, desempenho muito inferior ao ritmo de pelo menos 6% ao ano de 2004 a 2007. Mais uma vez, o que explica a subida atual é a descida em razão da crise do ano passado. "A bolsa e o mercado imobiliário estão se valorizando muito rápido, mas ainda não chegaram ao nível de um ano atrás", diz Andy Rothman, especialista em mercado chinês da corretora CLSA.
Mesmo que a bolha assassina descrita por Roubini e seus seguidores ainda não exista, o risco de que algo parecido com ela ganhe forma nos próximos meses é considerável. Afinal de contas, a política monetária nos países ricos continuará frouxa a perder de vista. O presidente do Fed, Ben Bernanke, já avisou que as taxas de juro nos Estados Unidos continuarão próximas de zero por um longo período. Com a economia americana capengando e o nível de desemprego superando os 10%, essa não é mesmo a melhor hora de mexer nos juros. E as pífias taxas de retorno no maior mercado do mundo serão um poderoso incentivo à busca de alternativas de investimento em outros mercados. Segundo o Instituto de Finanças Internacionais, o fluxo de dólares para mercados emergentes deve passar de 348 para 671 bilhões de dólares em 2010. "Os países emergentes estão liderando a retomada da economia mundial", diz Philip Suttle, economista-chefe do instituto. "O capital, que busca crescimento, está indo para onde tem de ir." Finalmente, os emergentes devem começar a subir seus juros antes dos países ricos, já que a retomada econômica está vindo mais cedo. Isso os tornará ainda mais atraentes para investidores estrangeiros. "O risco de distorções daqui para a frente é real", diz Suttle. A história mostra que a reversão de períodos de euforia tende a ser traumática, e país nenhum quer ser protagonista de um espetáculo desses. O governo chinês, por exemplo, já está diminuindo o nível de estímulo à economia -- o crescimento do crédito deve baixar dos 34% atuais para 20% até o fim do ano. "Para evitar um possível superaquecimento, o governo deve permitir a valorização do yuan já no primeiro semestre de 2010", diz Daniel Tenengauzer, chefe de pesquisa para mercados emergentes do Bank of America Merrill Lynch.
Para o banco central de países ricos, o surgimento de uma nova bolha mundial representa um dilema e tanto. Sob o comando de Alan Greenspan e Ben Bernanke, o Fed lavou as mãos para a bolha imobiliária americana -- para eles, cabia ao mercado julgar se os preços estavam ou não corretos. Não há, até agora, sinais de que o Fed esteja preocupado com o preço dos ativos. Pelo contrário. A queda do dólar e a valorização das bolsas parecem agradar a Bernanke. "Isso tudo ajuda a estimular a economia americana, que é sua grande preocupação", diz o economista Alan Meltzer, o mais renomado estudioso do Fed. Mas o que ele fará caso os preços entrem numa trajetória irracional de alta? Em novembro, Bernanke classificou esse dilema como o maior problema de política monetária desta década. A dúvida, sempre, é: como esvaziar uma bolha sem atrapalhar a recuperação da economia? "A situação da economia global ainda é muito frágil", diz Brad DeLong, professor de economia da Universidade da Califórnia em Berkeley. Apesar do crescimento de 3,5% do último trimestre, ainda sobram dúvidas sobre a forma com que a economia americana reagirá ao fim dos programas de estímulo governamentais. O trauma causado pela queda do castelo de cartas do mercado imobiliário fez com que as bolhas entrassem no centro das preocupações do Fed. Mas tudo indica que Bernanke não vai começar a se preocupar com o surgimento de uma nova bolha até que a economia americana se recupere do estrago causado pela velha.
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